Transfiguração: um mergulho para além da matéria.
Um texto também transfigurado
“Num círculo inscrito e num quadrado circunscrito, de repente, vejo-o estava escrito num papel pelo artista, numa mancha meio tinta meio água ( como se chuva colorida fosse uma ilusão do trópico), borrava o resto da frase.
Podia ser dito que a frase nunca fora concluída se fragmentos de palavras diluídas não houvesse acinzentado o tom de carne, de ferrugem da página.
Desse ocre suavizado o olhar se erguia para utensílios de cozinha e de trabalho, de comer e de pintar, dispostos sobre mesas de noites marcianas que eram aqui mesmo da terra onde se movem o caminhão e a larva, a formiga e uma réstia de luz da tarde.
Um poeta do mangue havia dito, como se respondesse ao pensamento imponderável: ”pense na chuva caindo sobre sítios hipotecados”…
Isso era uma resposta? Não. Os versos não respondem à nada, os quadros não significam nada que esteja fora deles – e dentro dos seus quadros circunscritos e círculos inscritos na água da tinta borrada com delicadeza e precisão, os pratos são discos voadores sem fantasmagorias, objetos humildes que aterrisaram no poço da memória imediata, no sem fim dos corredores das casas de adobe iluminado.
Um extra-marciano em contato com um terrestre de Marte poderia compreender coisas que não fossem ditas, imagens guardadas como copos e cartas, pensamentos e palavras pelas quais também pecamos.
Os quadros – todos os quadros – aspiram ao silêncio e como em versos de monges tibetanos, à cinza das fogueiras de gordura de iaque, guardam todas as cores do fogo, chaleiras que ferviam e os doces dedos da chuva, mais uma vez colorida que se tornou em tinta nessas imagens, ora vermelhas e douradas, ora azuis e verdes como o mar que muda sob os caixilhos de uma vasta janela aberta ao ser “que sobrevive a tudo”.
Fernando Monteiro – agosto , 1993