Quantos braços cabem num abraço?

Quem me conhece sabe que eu sou devagar.

Devagar no falar, no agir e também no pintar.

Gosto de depurar uma obra ao longo de um tempo, às vezes longo. Se a obra é de grande formato, aí então…

Para mim o compromisso deve ser com a obra e não com a produção.

Essa é a questão.

Há mais de um ano atrás eu comecei uma pintura de grande formato.

o início da obra
Odilon Cavalcanti começando a pintura do quadro “O Abraço” em 2016.

Tinha uma encomenda sem prazo a se confirmar, com adiantamento prévio e uma ideia prévia na cabeça: ao contrário do meu habitual processo de não premeditar o que pinto, pintar à partir de uma imagem pré determinada.

No caso, uma representação bidimensional de uma escultura que eu criara há muitos anos,  intitulada “o abraço” que tinha a característica peculiar de ser um objeto tópico criado a partir de um determinado recorte na superfície plana de um suporte bidimensional retangular que é tencionado e, por encaixe se auto sustém no espaço. O ”O abraço” tinha sido criado, inclusive, para ser uma escultura passível de ser enviada por internet e impressa em qualquer impressora normal, jato de tinta ou laser e depois recortada  montada pelo destinatário, muito antes de se pensar em impressora 3D…

Voltando ao quadro, minha ideia era devolver o “abraço” escultura para a representação plana da pintura e assim fechar um ciclo de criação, reintegrando-a a minha expressão principal que é a pintura.

Estava neste processo quando recebemos em nossa casa/atelier a visita de minha filha  do meio  e sua família,marido e filha, minha netinha linda a Iolanda, que estava completando 4 anos por aqueles dias.

Pensando em entusiasmá-la com a arte, já nos últimos dias da visita convidei Iolanda para pintar comigo a obra que estava então, apenas delineada e com umas poucas  áreas já começadas a serem preenchidas com cor.

detalhe da obra "O Abraço" de Odilon Cavalcanti.
detalhe pintado pela neta do artista

Apresentei a ela o pastel e expliquei como usar este material fundamental no meu processo de trabalho e que, por ser utilizado em barras como giz e ser um material seco, permitir uma abordagem rápida (é sabido que a atenção da criança pela novidade dura mais o menos em minutos, o quanto ela tem de idade…)

Vesti meu avental, a mãe dela, minha filha Nara adaptou um avental nela e partimos para a ação, ela desenhando com pastel e fixando o registro com médium acrílico incolor, enquanto a avó coruja registrava a cena para a eternidade.

Nascia uma estrela no universo da arte. Veja o vídeo.

Ao longo deste último ano tenho trabalhado seguidamente nesta tela inspirado pela força do novo que marcou este trabalho, mas também revisitando todos ou quase todas as principais fases do meu trabalho nos últimos quase cinqüenta anos.

Ontem, tive o prazer de receber em meu atelier um dos principais colecionadores do meu trabalho, que tinha feito a encomenda e que também é do Recife, como minha filha e família, veio retirar a obra, aproveitando uma viagem a São Paulo.

detalhe da obra "O Abraço" de Odilon Cavalcanti.
detalhe da obra “O Abraço” de Odilon Cavalcanti.

Ao mostrar a obra a ele e comentar sobre ela, não deixei de contar toda esta história e lhe pedir que, depois de mandar emoldurar, quando colocasse a obra na parede a que se destina e lhe fosse confortável e conveniente, fizesse o favor de convidar minha filha e minha neta para ver a obra colocada e assim, reforçar ainda mais seu ânimo artístico Pensei que ela iria adorar saber que o quadro estaria lá bem pertinho dela pelo resto da vida e que ela aos 5 anos ia ter sua “obra-prima” vendida…

Ele até gravou meu depoimento porque achou lindo e vibrou com o valor que eu tinha dado ao episódio, inclusive por conta dos comentários que fiz sobre o abraço e a paz (assim se chama a escultura que resulta da forma que é retirada do suporte para permitir a articulação do “o abraço”).

detalhe
detalhe da obra “O Abraço” de Odilon Cavalcanti.

Quem não gostou nada da história foi minha neta quando soube que o quadro fora vendido.

Nem minha filha nem minha mulher escaparam do chororô, por isso resolvi registrar tudo aqui de uma forma definitiva e educativa como só as boas oportunidades permitem.

Se quiser, um dia, ser artista, minha neta terá que aprender cedo que um artista não trabalha pra si, mas para toda a humanidade e o que faz é como um ser vivo, como um filho, como diz Malouh, e assim, tem uma vida própria, na maior parte das vezes,   como minhas filhas e ela própria um dia foram ou irão para o mundo realizar seus próprios sonhos e viver sua própria trajetória.

detalhe
detalhe da obra “O Abraço” de Odilon Cavalcanti.

É bom que saiba que os sentimentos que depositamos nos quadros, os abraços que eles encerram, a paz que suscitam, as emoções que provocam, vão servir de lastro a outros muitos abraços, onde cabem muitos braços que sustentam a paz do mundo e erguem para toda a humanidade o espelho das almas que neles queiram e possam se  ver refletidas.

A posse implica o cuidado, a conservação da obra de arte e não a sua propriedade.

A obra continua sendo do artista para sempre. Para sempre!

Uma obra de Leonardo da Vinci cinco séculos depois de realizada continua sendo dele e não do Dodge de Veneza que a encomendou.

detalhe
detalhe da obra “O Abraço” de Odilon Cavalcanti.